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Meu cérebro azul: a minha jornada como uma pessoa autista
Bruxa Cientista – Edição #005
Cento e trinta e dois. Rolo a tela uma, duas, três vezes. Leio a frase "The mean score of autistic people; strong evidence for autism" (Score médio de pessoas autistas; forte evidência de autismo). Não pode ser. Não faz sentido. Eu era baladeira mais nova. Sempre fui tagarela. Eu gosto de pessoas. Eu não sou autista.
Olho para minha colega de sala e pergunto: o site do teste está com problema? Quanto deu seu score? A resposta é um número abaixo de 30. Viro para o outro lado e pergunto a mesma coisa. A mesma resposta. Seguida de um "Por que? O seu deu alto?". Com vergonha eu mostro meu resultado.
Minhas colegas me dizem: vai falar com o professor Fabi, você não tem como ser autista!
Acaba a aula. Torcendo meus dedos repetidamente, me controlando para não ficar balançando para frente e para trás como gosto quando estou ansiosa, vou falar com o professor. Falo do meu resultado.
Vejo que ele nota as minhas mãos. Paro de torcer. É difícil controlar esses movimentos, mas sei que as pessoas acham isso estranho então evitava fazer-los em público. Meu professor recomenda que eu procure um psicológo na universidade para falar sobre isso e pedir uma avaliação.
Saio da aula tonta. Revejo mentalmente várias cenas da minha vida. Começo a achar que ser autista explicaria muitas coisas. Talvez essa fosse a resposta para todas as vezes que perdi amigas. Crushes. Namorados.
Quem sabe o autismo explicasse realmente o que acontece comigo. Eu já passei por inúmeros diagnósticos ao longo da minha vida. Ansiedade generalizada. Bipolaridade. TDAH. Personalidade hipertimica. Mas eu nunca me identifiquei com nenhum destes diagnósticos (exceto ansiedade que realmente tive e fiz tratamento).
Depois daquela aula autismo virou meu novo hiperfoco. Devorei muitos livros. Assiste inúmeros TED Talks. Pesquisei mil canais no You Tube. A cada nova informação, uma certeza, eu era autista, com ou sem um papel para comprovar isso.
Segundo o DSM-5, O Manual de Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais, o TEA (transtorno do espectro autista) é um dos Transtorno do Neurodesenvolvimento, caracterizado pelas dificuldades de comunicação e interação social e também os comportamentos restritos e repetitivos.
Por ser um espectro, essas dificuldades são distintas para cada pessoa e isso também explica em parte porque tanta gente passa a vida sem saber da sua neurodivergência.
Eu descobri que sou autista aos 44 anos de idade.
Você alguma vez já pensou que talvez haja uma explicação para as dificuldades que você passou? Se você sente que meu relato se parece com coisas que aconteceram contigo, procura ajuda.
A busca da confirmação: sou autista ou não?
A primeira pessoa que contei foi meu marido. Lembro que ele parou e disse: Hummmm acho que faz sentido, Fabi. Ele tinha coincidentemente ouvido um podcast sobre autismo em adultos e achou que eu tinha muito em comum com o autor, que era autista.
Marquei o psicólogo na faculdade e contei o que houve em sala de aula e a conversa com meu marido. Começa então uma investigação e vou relembrando de várias situações da minha vida. Ele sugere que eu repita o teste, mas de uma forma diferente. Dê para seu marido e filho responderem se eu faço/sou o que está na pergunta.
Refaço o teste com o Francis e o Pedro. Eles até hoje dão risadas quanto contamos do meu diagnóstico. Afinal de contas eu começo a listar as perguntas e eles olham um por outro e dizem “é claro que você faz isso!”. “Sempre!”. Resultado: meu score quando eles responderam foi mais alto do que quando eu respondi sozinha.
Resumindo, foi uma jornada de mais ou menos uns dois, três meses até o psicólogo me dizer que: sim, Fabi, tudo indica que você está no espectro e tem autismo leve, ou nível 1. Não tenho habilitação para te dar o diagnóstico formal, para isso você precisa de um psiquiatra.
Cada país tem as suas normas sobre o diagnóstico do autismo. Eu descobri que sou autista em 2019 e até hoje não tenho um “papel” dizendo isso. Mas eu fui avaliada e quem me diagnosticou foi um profissional. Mas aqui na Nova Zelândia, quem fornece o laudo é um psiquiatra ou um psicólogo clínico especialista em autismo.
Fiquei na fila de espera por um atendimento para ter o diagnóstico formal por dois anos depois desisti. para quê? Eu sei que sou. Todos que convivem comigo não tem nenhuma dúvida.
Neurodivergência e uma coleção de constrangimentos
Fui uma criança muito reservada. Sempre me senti estranha e inadequada. Tive apelidos como E.T. Gostava de coisas que muitas crianças não gostavam: música clássica, ópera, estudar mitologia, astrologia, história…colecionar selos.
Meus pais nunca pensaram que havia algo de errado comigo ou alguma necessidade de suporte diferenciado. Muito menos autismo…ainda mais em que não se falava sobre isso naquela época. Minha mãe diz que achava que era só timidez, ou o “meu jeito”, nunca achou que pudesse ser alguma outra coisa.
Por muitas vezes meus pais acharam que eu estava fazendo manha, birra. Pára com isso Fabiane! Coloca essa blusa já! Mas mãe, dói! Eu juro! Dói…eu não aguento, parece que tem alfinete! Digito com as lágrimas caindo por lembrar quantas vezes minhas sensações foram invalidadas porque parecia impossível que fossem verdade.
Perdi a conta das vezes que meus pais deram festas e eu me escondi embaixo da cama ou dentro do armário. Aliás, eu amava esse armário. Era muito grande. Lembro que eu cabia sentada dentro dele com as pernas esticadas. Eu, minha lanterna e meus livros. Era meu refúgio.
Se eu fosse te contar todas as histórias da minha vida, que hoje consigo ver claramente estarem relacionadas ao meu autismo, daria um livro (quem sabe um dia?) e não uma newsletter.
A primeira era um casamento da alta sociedade carioca. Lembro de meus pais discutiram e minha mãe estava muito irritada e resolveu que não ia. Após a discussão ela falou algo do tipo: Naninha, nunca se case. Casamento é a pior coisa do mundo. Um saco. Festa de casamento então, nem se fala. Nunca gaste dinheiro com essa besteira.
Fica então decidido que eu vou ao casamento com meu pai, representando minha mãe. Não lembro porque, mas fiquei animada com a ideia. Pois bem, após a cerimônia, já na festa, a noiva está indo de mesa em mesa cumprimentar as pessoas.
Quando ela chega a nossa mesa, meu pai inventa alguma desculpa esfarrapada do porque minha mãe não foi ao evento. Escuto e penso, mentira. Não foi isso que aconteceu. Então em alto e bom som, repito todas as palavras da minha mãe mais cedo. Uma narrativa completa de como casamento é uma m#rda!
Meu pai constrangido, diz que estou brincando. Você já imagina a cena, não é? Eu insisto que não, que foi o que a mamãe falou. Não lembro como o episódio foi encerrado, mas sei que fiquei de castigo. Na minha cabeça a maior injustiça do mundo, afinal de contas, eu só estava falando a verdade.
Coleciono situações onde eu falei a verdade ou respondi o que me perguntaram e isso me colocou em problemas.
A outra situação é mais recente. Em junho desse ano, durante uma ida a São Paulo, tive a oportunidade de conhecer pessoalmente o meu mentor e agora amigo, HC.
Eu e o nada mirrado, Henrique Carvalho (HC).
Em determinado momento, feliz e empolgada que estou, comento algo como: eu sou sua fã desde que você era um moleque mirrado e magrelo. Eles dão uma gargalhada alta. Eu não entendi o motivo do riso #juro.
Depois, falando com minha amiga, entendo que isso poderia soar como uma grosseria, mas que foi tão espontâneo que gerou o riso. Perdão público HC! Rsrsrs.
Essa “falta de filtros” e até uma ingenuidade, são características autistas que se apresentam com bastante frequência em pessoas no espectro.
Claro que constrangimentos deste tipo não estão restritos a autistas. Tenho certeza de que você tem muita história constrangedora para contar também, não é? #meconta?
Saindo do armário, uma jornada de autoaceitação
Depois de digerir a notícia, passei por um processo novo: decidir se saia ou não do armário neurotípico. Decidi a falar aos poucos, somente para os mais íntimos. Recebi muito apoio. Mas tive reações estranhas e capacitistas. Uma amiga disse que sentia muito. E emendou com um “tem certeza? Você não parece autista”.
Se eu puder te ensinar uma única coisa nessa edição, que seja essa: nunca diga isso para uma pessoa. Essa fala diminui a experiência, as dificuldades e nega quem essa pessoa é.
Não existe parecer autista. Nem todo autista é como Tom Cruise em Rain Man. A única certeza sobre autismo é que existem inúmeras expressões, por isso se chama espectro.
Com o tempo fui entendendo um pouco mais o que significava ser autista e me sentindo mais confortável em falar sobre isso em público. Cheguei a fazer algumas lives no perfil antigo do instagram.
Uma coisa muito bonita que aconteceu desde 2019, é que partilhando a minha jornada, consegui ajudar algumas alunas. Lembro de pelo menos 5 pessoas que descobriram que são autistas também, porque se identificaram com o que dividi.
Meu autismo não me aprisionou, mas me libertou para aceitar partes minhas que são diferentes da maioria das pessoas.
Não fiz essa jornada sozinha. Na faculdade, por exemplo, fui encaminhada para um disability advisor (DA) e isso abriu um novo mundo no meu dia a dia. Foi com a Joan, minha DA que entendi que eu não podia, de jeito algum, ficar “controlando” ou “segurando” a minha vontade de mexer as mãos, as chamadas estereotipias. Elas são a forma que meu corpo autista usa para se auto-regular.
Com ela, eu também aprendi que existem cobertores ultra pesados, específicos para autistas e pessoas com ansiedade e minha qualidade do sono melhorou muito. E lá conheci o loop, um tipo especial de protetor no ouvido que reduz e filtra barulho. Aliás, muita gente que não é autista usa também para minimizar o desconforto com ruídos.
Apesar de todo apoio, eu estaria mentindo se dissesse que foi super tranquilo e confortável sair falando “sou autista”. Não foi. Ainda existe muito preconceito, mesmo que muitas vezes seja disfarçado.
Precisamos falar mais sobre neurodivergência para que nossa sociedade seja realmente mais inclusiva. Inclusividade vai muito além de dar lugar preferencial em fila para quem é autista.
Então vamos aprender um pouco mais sobre autismo? Quem são, onde vivem, o que comem?
Eu sou a Fabi. Vivo na Nova Zelândia. Adoro comer kiwi dourado. Rsrsrs.
Depois dizem que autista não tem senso se humor. Eu tenho. Meu marido e filho dizem que eu só entendo e faço piada de criança. Para mim tá bom assim mesmo!
Be a bá do autismo
Antigamente o meu tipo de autismo se chamava Asperger. Hoje diz-se autismo de baixo nível de suporte. Isso é diferente de dizer que eu não tenho nenhuma dificuldade decorrente do autismo.
Autismo NÃO é doença. Não se pega. Não se cura. Não começa a partir de um determinado acontecimento ou idade. Autistas NASCEM autistas. Autismo é um funcionamento cerebral diferente.
Meu cérebro não consegue ser seletivo no que se refere à estímulos. Ele recebe todos esses inputs ao mesmo tempo. É como se você colocasse um equipamento para carregar. Mas o aparelho é 110 e você usa um carregador de 220. A carga que entra é excessiva.
É o que acontece comigo. E quando o input de sensações é muito grande, invés de “recarregar” a minha bateria, ela queima. E leva uns dias para voltar a funcionar. É a chamada “ressaca social”, que acontece também com introvertidos e pessoas com sensibilidade sensorial, mas que não necessariamente são autistas.
Além das questões sensoriais, aprendi e ainda estou aprendendo sobre como contornar minhas dificuldades sociais. Agora eu conto para todo mundo, logo que nos conhecemos, que sou autista.
Explico que se eu ficar olhando para o lado ou me mexendo, não é pressa. Deixo claro que eu não entendo segundas intenções e raramente percebo sarcasmo e ironia, a não ser que eu conviva contigo com um pouco mais de proximidade.
São pequenas coisas, mas que melhoram a qualidade das minhas relações. Conforme eu vou aprendendo sobre autismo, também vou ampliando o debate e fazendo a minha parte em desbancar vários mitos sobre neurodivergência.
Meu autismo não me trouxe só dificuldades. Graças ao meu cérebro diferente eu consigo conectar conhecimentos muito distintos e criar coisas únicas. Outra vantagem é meu hiperfoco. Se eu gosto de algo posso ficar estudando por horas a fio. A desvantagem disso é que mais de uma vez esqueci de comer, beber água e fazer intervalos porque estava em hiperfoco.
Se você desconfia que pode ser neurodivergente (autista, TDAH, etc), recomendo fortemente que busque algum profissional para confirmar sua suspeita.
Recentemente saiu uma pesquisa sobre neurodivergência e redes sociais. Esse estudo indica que mais de 75% deste conteúdo isso é feito por pessoas que não tem nenhuma formação profissional sobre isso.
Essa pesquisa recente afirma que de 100 vídeos publicados no Tik Tok, com milhões de views, sobre TDAH, apenas 21% eram realmente úteis. 52% deles continham informações tendenciosas e erradas. Isso pode ser muito perigoso. Se você quiser ler o estudo clica aqui.
Deixo claro que não estou invalidando as experiências pessoais de neurodivergentes. Eu mesma estou fazendo isso aqui. O problema é que quando começamos essa jornada de busca por confirmação do nosso diagnóstico, estamos vulneráveis e um mar de fake news certamente não nos ajuda em nada.
Espero que você tenha gostado de saber um pouco mais sobre esse outro lado meu. Quero ressaltar que não tenho raiva nem vergonha de ser autista.Eu nasci assim. Não foi algo que escolhi.
Alías, aproveito para dizer que eu não gosto do termo “disabled”. Sinto que nos diminui. Não somos deficientes. O mundo é que é deficiente para lidar com pessoas diferentes da maioria, sejam neurodivergentes ou qualquer outra minoria.
Favoritos da semana 🏆
Leitura: Um dos meus livros favoritos deste ano é o Mito da Normalidade do Dr Gabor Matte. Saiu em português faz pouco tempo. Ele fala sobre como vivemos em um mundo doente (Oi Renato Russo!), mas““fingimos” normalidade. O preço disso é a nossa saúde mental.
Seriado: Você já deve saber que adoro mitologia. Apesar de ser um seriado meio juvenil, eu curti a nova temporada do Ragnarok. O legal é que você aprende um pouco mais sobre a mitologia nórdica assistindo. Está passando na Netflix. Aqui o trailer da primeira temporada para você ver se curte.
Histórias para dar risadas: Não sou só eu que passo vergonha. Aqui em casa temos um vício noturno. Assistir às histórias que as pessoas contam no quadro do Porchat chamado “Que história é essa Porchat”. A nossa favorita até hoje é essa aqui. Essa mulher não sabe, mas ela nasceu para ser humorista! A gente riu de ficar com dor de barriga rsrs.
Se você quer saber algo sobre autismo que eu não abordei aqui, pode me escrever. Vou adorar responder as suas perguntas!
Até a próxima edição, segunda feira, as 9 am. A não ser que eu dê mancada e esqueça de programar a news como aconteceu nesta edição! #sorry.
Beijocas,
Fabi Ormerod
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